Em Mato Grosso, um grupo de professoras da rede municipal de Educação de Várzea Grande desenvolve um projeto que une os Círculos de Construção de Paz, metodologia da Justiça Restaurativa, e a Psicanálise como estratégia de enfrentamento ao feminicídio. A proposta foi apresentada durante o III Congresso Internacional: Novas Abordagens em Saúde Mental, realizado nos dias 19 e 20 de agosto, em Cuiabá.
A proposta foi apresentada durante o III Congresso Internacional: Novas Abordagens em Saúde Mental, realizado pelo Centro Educacional de Novas Abordagens Terapêuticas (Cenat), nos dias 19 e 20 de agosto, no Teatro Zulmira Canavarros, em Cuiabá. O encontro teve como objetivo abrir espaço para debates e apresentação de boas práticas voltadas à melhoria da qualidade de vida de pessoas em sofrimento psíquico.
Os Círculos de Construção de Paz e a Psicanálise partem da ideia de que falar, ser escutado e elaborar narrativas sobre si mesmo possui potencial terapêutico e transformador. Ambos utilizam a palavra como via de cura e mudança: seja para restaurar relações sociais e promover autoconhecimento, como nos círculos, ou para elaborar conflitos internos, como na psicanálise.
“A escuta ativa realizada pelo psicólogo ou pelo psicanalista é essencial para ajudar mulheres vítimas de violência a verbalizar e compreender suas experiências em um relacionamento, desenvolver um olhar crítico diante das situações e recuperar sua identidade. É exatamente nesse ponto que os círculos de construção de paz criam um ambiente seguro para a revelação espontânea, permitindo que as participantes reconheçam suas dores, desafiem narrativas de culpa cristalizadas na sociedade e se expressem sem julgamentos. A conexão entre o aprofundamento psicanalítico e o diálogo restaurativo possibilita buscar resultados positivos para os envolvidos”, explicou a professora e psicóloga Leyze Grecco, que também integra a rede de enfrentamento à violência contra a mulher e de fortalecimento da Justiça Restaurativa no município.
Facilitadora de Círculos de Construção de Paz, Leyze relata que o projeto foi desenvolvido a partir de encontros realizados inicialmente com 60 mulheres, profissionais da rede municipal de Educação, com o objetivo de promover autoconhecimento, despertar valores e fortalecer a identidade feminina. A meta é alcançar 100% das mulheres lotadas nas 97 unidades de ensino de Várzea Grande, entre Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e Escolas Municipais de Educação Básica (EMEBs).
“Quando trazemos a temática da identidade para dentro dos Círculos de Paz, abrimos caminho para reflexões sobre quem somos e como nos enxergamos. Quando temos convicção de quem somos, conseguimos agir de forma diferente. Essa convicção não está apenas no aspecto físico, mas também no psíquico, emocional e comportamental. Essa investigação do eu, como aponta a psicanálise, é fundamental para provocar mudanças. Quando a mulher se reconhece de forma clara, encontra forças para mudar sua forma de agir e romper o ciclo da violência. Diferente do atendimento individualizado em consultório, os círculos possibilitam um aprofundamento coletivo sobre a identidade”, destacou Leyze.
Enquanto a Psicanálise busca transformar sintomas em narrativa, permitindo ao sujeito ressignificar sua dor, os Círculos de Paz atuam no plano coletivo, dando espaço à expressão de mágoas, medos e ressentimentos, que podem ser elaborados e transformados em novas percepções. Tanto a Psicanálise quanto os círculos entendem a fala como via de elaboração psíquica de conflitos.
No livro Recordar, repetir e elaborar, o psicanalista austríaco Sigmund Freud defende o dispositivo clínico da escuta como um espaço de acolhimento, onde a pessoa pode narrar, recordar e elaborar suas dores e traumas. De forma semelhante, nos Círculos de Paz, cada participante tem assegurado o direito de fala e de escuta, criando um ambiente de reconhecimento e apoio mútuo.
Entretanto, romper o ciclo da violência não é simples. A ausência de espaços seguros de diálogo e de fortalecimento emocional pode reduzir o encorajamento para que mulheres denunciem agressores.
Dados de 2024 do Comitê para a Análise dos Feminicídios em Mato Grosso, formado pelo Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Assembleia Legislativa e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), apontam um cenário preocupante: em pesquisa com familiares e amigos de quinze vítimas, 60% dos casos não tinham boletim de ocorrência, quase 70% das vítimas deixaram filhos menores, e 67% dos familiares tinham conhecimento das agressões, mas permaneceram em silêncio.
Para a professora e facilitadora de Círculos de Paz, Nailza Gomes, mestre em Educação e doutora em História, o alto índice de feminicídios mobiliza instituições do sistema de Justiça e da sociedade civil na busca por alternativas que possam romper o ciclo de agressões.
“Acabamos de participar da elaboração de um protocolo sobre violência contra a mulher, que será implementado nas escolas da rede municipal. O documento estabelece procedimentos definidos para professores, gestores e coordenadores diante de revelações de violência, seja contra mães, avós ou profissionais da escola. O protocolo será publicado e acompanhado de uma capacitação em outubro, garantindo que toda a rede esteja preparada para acolher denúncias e agir corretamente”, afirmou.
Nailza acrescenta que já está em andamento um segundo protocolo, voltado para casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, com participação de gestores escolares para orientar sua aplicação nas unidades de ensino.