Danilo Vital
O juiz da causa pode nomear um perito para exercer a função de inventariante digital, de modo a acessar o computador de uma pessoa falecida e extrair dele apenas os dados importantes para o inventário, preservando os direitos de personalidade.
Essa conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso especial das inventariantes do caso de uma família que morreu em acidente de helicóptero em São Paulo, em 2016.
O tema é inédito na jurisprudência do STJ. O objetivo das recorrentes é acessar os dados de três tablets pertencentes aos falecidos para identificar bens de valor econômico ou afetivo que possam ser inventariados.
Esse procedimento agora terá de passar por um intermediário, que a autora do voto vencedor, ministra Nancy Andrighi, chamou de inventariante digital. Ela foi acompanhada pelos ministros Humberto Martins, Moura Ribeiro e Daniela Teixeira.
Ficou vencido o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que se posicionou contra a criação dessa figura intermediária. Para ele, cabe ao Judiciário determinar o acesso às informações dos tablets, que pode ser feito pelos herdeiros inventariantes.
Tablets dos falecidos
O caso gerou debates acalorados na 3ª Turma porque o objetivo do recurso especial não foi a criação da figura do inventariante digital. As duas inventariantes pediram à Apple, fabricante dos tablets, a senha para o acesso às informações, mas receberam como resposta que isso não era possível.
O objetivo delas é que o juiz do inventário envie novo ofício à empresa, com dados cadastrais e pessoais dos usuários desses tablets — os mortos no acidente de helicóptero —, para que seja possível acessar o conteúdo dos dispositivos.
Esse segundo ofício foi rejeitado pelas instâncias ordinárias porque representa questão de alta indagação — seria necessário produzir provas, o que deveria ser feito por meio de uma ação própria e ordinária, e não como incidente processual.
Inventariante digital
Para todos os ministros da 3ª Turma do STJ, a conclusão das instâncias ordinárias está errada. Eles entendem que a questão do acesso aos aparelhos eletrônicos pode ser tratada no âmbito do processo de inventário.
A diferença primordial é que a relatora, ministra Nancy Andrighi, percebeu que isso abriria a possibilidade de a Apple, o juiz ou as inventariantes terem acesso a informações personalíssimas dos falecidos, que estão protegidas por senha.
Por isso, ela abriu a possibilidade de um inventariante digital se tornar o responsável por acessar os dados e filtrá-los, decidindo quais podem ser usados para identificar bens passíveis de serem inventariados sem ferir o sigilo das informações pessoais dos falecidos.
Essa função não tem a ver com a de inventariante prevista no Código Civil. O inventariante digital não representa o espólio: ele é um perito a quem cabe abrir a máquina e extrair as informações.
“Ele só ajuda o juiz naquilo que nós não temos: a expertise de abrir uma máquina dessa e arrolar minuciosamente tudo o que tem ali dentro, para então dizer o que pode ser transmitido ou não. Toda vez que tiver algo que viole os direitos de personalidade, o juiz não poderá transmitir”, explicou Nancy.
Diferenciação injustificada
Abriu a divergência Ricardo Villas Bôas Cueva, com voto-vista lido nesta terça-feira (9/9). Para ele, não há razão para afastar dos inventariantes o acesso aos bens digitais dos falecidos, nem para diferenciar o tratamento entre herança digital e herança analógica.
Isso porque os inventariantes, assim como os demais herdeiros, têm por obrigação zelar pelos direitos de personalidade das pessoas falecidas sem a necessidade de nomeação de um intermediário, como determinou a maioria na 3ª Turma.
Se a preocupação é com o sigilo das informações contidas nos aparelhos, disse Cueva, é possível impor segredo de Justiça ao processo de inventário. E se o risco é de mau uso dessas informações, a resposta é o uso de institutos como abuso de direito ou responsabilidade civil.
Segundo o ministro, a proposta da relatora cria uma diferenciação injustificável para os bens digitais. “Uma carta privada deixada pelo falecido poderá ser aberta pelos herdeiros, enquanto o acesso a uma comunicação eletrônica terá tratamento diferenciado.”
Seu voto foi por dar provimento ao recurso especial para autorizar o juízo de primeiro grau a enviar ofício à Apple de modo a promover os atos necessários para identificar e acessar o acervo dos tablets.
Cueva ainda abriu a possibilidade de o juiz instaurar um incidente processual de identificação e avaliação de bens digitais, com nomeação de um profissional com experiência nesse tipo de ativo, se considerar necessário.
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.