Relatório do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), Ministério Público de Mato Grosso (MPMT), Comissão de Enfrentamento à Tortura e Defensoria Pública de Mato Grosso revelou possível prática sistemática de tortura, maus-tratos e retaliações contra pessoas privadas de liberdade na Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como "Ferrugem".
De forma consensual, os recuperandos afirmam que o então diretor tinha total conhecimento da operação e chegou a participar ativamente, atirando de cima da tranca aérea e proferindo frases como “aqui eu sou o rei”.
A inspeção extraordinária emergencial, realizada no fim de outubro, identificou um cenário descrito como de violência institucional generalizada, com registros de agressões físicas, psicológicas e uso abusivo da força por agentes da Polícia Penal. Segundo o documento, dezenas de detentos apresentavam marcas recentes de disparos de balas de borracha, hematomas e ferimentos compatíveis com agressões contínuas, além de relatos de ameaças, humilhações e punições coletiva.
Um dos pontos centrais do relatório é a violência física e psicológica constante dentro da penitenciária. A inspeção identificou um padrão de agressões tanto em operações de segurança quanto na rotina diária da unidade. Entre os relatos estão chutes, tapas, empurrões, ameaças verbais e disparos de balas de borracha, inclusive dentro das alas e celas. Segundo os depoimentos, o uso da força acontece de forma excessiva e sem critérios claros, muitas vezes como resposta a pedidos simples, como atendimento médico ou reclamações sobre as condições do local.
Em um dos episódios mais graves apontados no documento, o próprio diretor da unidade teria participado de uma operação punitiva, sendo visto empunhando uma arma de fogo e efetuando disparos de cima da chamada “tranca aérea”. A ação ocorreu poucos dias após denúncias feitas ao sistema de Justiça, o que, segundo o relatório, indica possível retaliação institucional, além de indícios de abuso de autoridade e prática de tortura.
RACIONAMENTO DE ÁGUA E COMIDA
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Outro eixo do relatório é o uso da alimentação e do acesso à água como instrumentos de coerção disciplinar. O documento descreve um racionamento punitivo, com liberação de água apenas em horários restritos e interrupções prolongadas durante o confinamento noturno.
A inspeção conclui que o racionamento e a má qualidade da água constituem violação direta do direito à vida, à saúde e à dignidade humana, além de configurarem elemento estrutural de tortura psicológica e castigo coletivo.
Segundo os relatos, a água é liberada apenas três vezes ao dia, por curtos períodos, o que obriga os presos a armazená-la em garrafas improvisadas, baldes e recipientes inadequados. Durante o confinamento noturno, o fornecimento é frequentemente interrompido, deixando os detentos horas sem acesso à água para beber, tomar banho ou usar o banheiro. A inspeção também apontou que a água disponível apresenta coloração turva e odor forte.
Segundo relatório, recuperandos relataram ainda episódios de diarreia, infecções intestinais e erupções cutâneas, sintomas compatíveis com consumo de água contaminada. A falta de acesso permanente à água prejudica também a higiene pessoal, agravando a insalubridade e as condições de saúde já críticas da unidade.
Já a alimentação foi classificada como insuficiente e degradante. De acordo com os depoimentos, as refeições servidas são pequenas, mal preparadas e, em alguns casos, estragadas. Foram citados arroz e feijão crus, carne azeda e comida com cheiro forte.
Ainda conforme as denúncias, o jantar costuma ser servido por volta das 17h, e muitos presos afirmam ficar em jejum por períodos de cerca de 15 horas até o café da manhã do dia seguinte, que se resume a um líquido ralo e pão seco. O relatório aponta ainda que a comida é usada como forma de punição coletiva: em dias de tensão ou após reclamações, a entrega das marmitas é atrasada, reduzida ou simplesmente suspensa.
"LATÃO"
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As condições estruturais da unidade também foram apontadas como análogas à tortura. As celas apresentam ventilação precária, calor excessivo, falta de iluminação e quedas constantes de energia elétrica. Detentos chegaram a relatar que durante o chamado "latão", ou seja, o período em que os presos permanecem trancados entre o fim da tarde e a manhã seguinte, exaustores são desligados propositalmente, especialmente nos plantões comandados por servidores identificados como recorrentes em práticas abusivas.
Essa prática — adotada como rotina disciplinar e punitiva — configura tratamento cruel, desumano e degradante.
"O calor torna-se insuportável, agravado pela superlotação das celas e pela ausência de energia elétrica durante a noite", diz trecho do relatório. Atualmente, 1.600 pessoas estão privadas de liberdade na penitenciária de Sinop.
Como consequência, foram mencionados desmaios, crises respiratórias, pânico e gritos por socorro que, segundo o relatório, muitas vezes são respondidos com agressões, spray de pimenta ou disparos de balas de borracha, em vez de atendimento médico.
Também foram identificadas falhas no fornecimento de materiais básicos, como colchões em condições adequadas, roupas, sabonete, papel higiênico, pasta dental e escovas.
ACESSO A LAZER, SAÚDE E EDUCAÇÃO
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No campo da saúde, o documento aponta negação recorrente de atendimento médico e psicológico. Em depoimentos, internos afirmaram que pedidos de socorro são recebidos com hostilidade e intimidação. Um dos relatos mais graves menciona a morte de um preso após pedir ajuda por falta de ar, episódio que teria sido seguido pelo uso de spray de pimenta, sem socorro imediato. Não há, segundo a inspeção, acompanhamento psicológico estruturado nem protocolos de prevenção ao suicídio.
A negligência com a saúde bucal é mais um reflexo da lógica de desumanização institucional presente na penitenciária, onde o cuidado com a vida e a saúde é substituído por práticas de descaso, retaliação e sofrimento imposto.
Conforme o relatório, há registros de pessoas baleadas e com fraturas expostas que não receberam socorro médico imediato e foram deixadas sem curativo, sendo várias encaminhadas ao hospital pelos próprios integrantes de direitos humanos.
Os internos afirmam também que que não há informação nem acompanhamento individualizado por parte da assistência social, o que os mantém em completa desassistência burocrática e emocional.
No que se refere à assistência odontológica, a inspeção constatou a problemas de atendimento sistemático e equipamentos adequados.
No campo da educação, embora exista estrutura física para salas de aula, o funcionamento é precário e instável. Aulas são frequentemente canceladas por falta de escolta, problemas de segurança ou decisões administrativas, e o material didático é insuficiente. Professores relataram dificuldades para atuar dentro da unidade, enfrentando calor excessivo, falta de condições básicas e restrições que comprometem o processo de ensino.
Já as atividades de lazer, cultura e esporte são praticamente inexistentes: a quadra da penitenciária, que deveria ser usada para recreação, é utilizada majoritariamente para procedimentos de segurança e revistas coletivas, agravando o clima de tensão e confinamento constante.
Ao final, as entidades concluem pela constatação de tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante, em desacordo com a Constituição Federal, a Lei de Execução Penal e tratados internacionais de direitos humanos.
O QUE DIZ A SEJUS-MT
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Justiça de Mato Grosso (Sejus-MT) e aguarda posicionamento.















