Danilo Vital
Consulto Jurídico
Foto-JuriNews.com.br
Um embate entre o advogado José Paulo Schneider dos Santos e o juiz Diogo Bononi Freitas, da 1ª Vara de Igrejinha (RS), por decência no processo levou o causídico a ser denunciado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul pelo crime de desacato, previsto no artigo 331 do Código Penal.
Os fatos ocorreram em 25 de abril, durante audiência de instrução da primeira fase do rito do Tribunal do Júri no caso das gêmeas de Igrejinha — duas irmãs de seis anos que morreram em um intervalo de oito dias.
A mãe das vítimas, principal suspeita do crime, é defendida pro bono por José Schneider. Durante a audiência, após ser interrompido seguidas vezes pelo julgador, o advogado disse que ele não tinha condições morais, éticas e profissionais para o processo e pediu decência.
O juiz, então, perguntou se estava sendo chamado de indecente. “Sim. E não respondo por injúria ou difamação. Está conduzindo indecentemente”, devolveu o advogado.
A audiência terminou com ordem de ofícios à OAB do Rio Grande do Sul, para apurar falta do advogado, e à Polícia Civil, para apuração dos delitos de injúria ou difamação. O advogado prestou depoimento em 16 de junho.
Em 27 de agosto, o MP-RS fez a Schneider proposta de transação penal pelo crime de desacato, por entender que os impropérios na audiência transbordaram da prática forense e da defesa combativa.
A oferta foi de pagamento de R$ 4 mil para evitar o processo, e foi prontamente rejeitada pelo advogado. Ele foi denunciado no sábado (18/10), com proposta de suspensão condicional do processo mediante pagamento de um salário mínimo e comparecimento mensal em juízo. O processo tramita na 2ª Vara de Igrejinha (RS).
Pedido de decência processual
Para José Schneider, não há crime a ser apurado porque as falas foram proferidas no exercício da defesa da ré — que acabou pronunciada pela morte das filhas gêmeas e vai a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Ele entende que o pedido de decência está acobertado pela norma do artigo 142 do Código Penal, que exclui a incidência de injúria ou difamação quando a ofensa é feita em juízo, na discussão da causa, pelo advogado.
O embate com o magistrado começou cedo no processo. O juiz mandou oficiar a OAB-RS porque o advogado teria perdido o prazo de defesa prévia, o que ele alega não ter ocorrido — o prazo efetivamente cumprido foi o que constou no sistema eProc e foi alargado pela juntada de novos documentos ao caso. Esse foi o motivo para o primeiro pedido de suspeição do magistrado, rejeitado por ele mesmo.
No dia da audiência, a discussão ocorreu durante o depoimento do delegado do caso, que inicialmente falou livremente por mais de uma hora, sem ser interpelado. Quando a defesa passou a fazer perguntas, o juiz interrompeu e indeferiu algumas delas, por impertinência ou repetição. O advogado suscitou novamente a suspeição e, então, fez os impropérios (veja a transcrição abaixo).
No depoimento prestado à Polícia Civil, José Schneider explicou que o pedido foi de decência processual na condução do processo, sem a intenção de atentar contra a honra do juiz. E que as condutas foram feitas na defesa da ré e no exercício da profissão. Foi, portanto, um embate jurídico buscando a plenitude de defesa.
Por fim, ele pediu desculpas ao juiz caso ele tenha se sentido ofendido.
Apoio institucional
Até o momento, o advogado não foi intimado pela OAB-RS sobre os dois ofícios expedidos pelo juiz. Ele recebeu apoio institucional da Ordem e é representado na ação penal pela Comissão de Defesa, Assistência e das Prerrogativas (Cedap).
Antes da denúncia, a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) peticionou ao delegado da causa para apontar a inexistência de crime nas atitudes do advogado e pedir a inviolabilidade por seus atos e manifestações, como previsto pelo Estatuto da Advocacia.
“Sua intenção não era ofender pessoalmente o magistrado, mas registrar sua inconformidade com as condutas que ele vinha adotando ao longo do processo e daquela solenidade, as quais, na visão do advogado, causavam prejuízo à defesa da ré”, disse a entidade.
Por outro lado, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) também peticionou para alegar que a inviolabilidade dos atos dos advogados não é absoluta e para manifestar confiança na conclusão do procedimento com independência.
Para José Schneider, todo o caso gera uma incoerência flagrante: Diogo Bononi Freitas continua à frente do processo penal no caso das gêmeas de Igrejinha, apesar de se dizer vítima do advogado da ré.
Além disso, a denúncia contra ele foi assinada pelo promotor de Justiça Daniel Ramos Gonçalves, que também atua no caso criminal das gêmeas — foi quem assinou os memoriais da acusação e, portanto, tem interesse (ou conflito de interesse) na causa.
Eis a transcrição da audiência:
ADVOGADO: Delegado, eu quero entender: o senhor teve preocupação com as crianças? Com o Michel, para não indiciá-lo indevidamente? E com a questão psicológica da minha cliente?
DELEGADO: Tive preocupação de apurar, de identificar o máximo possível de elementos. Me sinto até hoje muito tranquilo quanto a isso. Acho que fiz bem meu trabalho.
ADVOGADO: O juiz vai me interromper de novo em plena defesa. Qual a interrupção agora, doutor?
JUIZ: Interrompi porque a pergunta está indeferida. O senhor já a fez.
ADVOGADO: Não estava repetida. Está tudo sendo gravado. Às 11h34, faço mais uma arguição de suspeição. O senhor não analisou meu pedido anterior, mas analisou o do delegado. O senhor não está deixando eu trabalhar. Já pronunciou a Gisele e quer condená-la. O senhor não reúne condições morais, éticas e profissionais para este processo.
JUIZ: O senhor pode entrar com exceção de suspeição pela via correta. Pode seguir com as perguntas.
ADVOGADO: Delegado… Aliás, juiz, a via correta é por petição. O senhor respondeu o delegado às 21h, fora do plantão. Tenha ao menos decência ao conduzir um processo criminal.
JUIZ: Constitua em ata que será oficiado à OAB sobre a conduta do advogado. Pode prosseguir com as perguntas.
ADVOGADO: Constitua também que os abusos cometidos serão oficiados ao CNJ e à Corregedoria. Pedi resposta de ofício e o senhor não deu. O senhor não gosta de ser contrariado. Se não quer ouvir, trabalhe com decência.
JUIZ: O senhor está me chamando de indecente?
ADVOGADO: Sim. E não respondo por injúria ou difamação. Está conduzindo indecentemente. O delegado aceitou a pergunta e o senhor o interrompeu. Esse advogado não tem medo de ofício. Não vou me calar.
JUIZ: Vamos tentar continuar a audiência.
ADVOGADO: O senhor tira minha palavra. Posso falar sem ser interrompido?
JUIZ: O senhor pode perguntar. Eu presido a solenidade e indefiro quando necessário. Isso é normal.
ADVOGADO: A calma é tirada pelo abuso do senhor. Se o senhor não abusar do seu poder, manteremos a calma.
JUIZ: Se o senhor entende que sou parcial, proponha exceção. O tribunal decidirá.
ADVOGADO: Não tenho problema com a presidência, mas sim com a que fere a paridade de armas. O senhor disse que não deixo falar, mas o senhor não me deixa.
JUIZ: Pode fazer quantas perguntas quiser.
ADVOGADO: Respeito sua presidência até que ela se torne desproporcional. O delegado repetiu-se várias vezes e o senhor não pediu objetividade. Quando a defesa trabalha, o senhor pede objetividade. Isso fere a paridade de armas.
JUIZ: Pode prosseguir com as perguntas.
ADVOGADO: Delegado, sobre a câmera: o senhor chamou a situação de pitoresca. A Gisele teria faltado com emoção, mas o depoimento do Josias — que está nos autos — é diferente.
Nota do advogado
À revista eletrônica Consultor Jurídico, José Schneider enviou a seguinte nota:
O processo penal, sobretudo o júri, é local em que se estabelecem debates sensíveis, complexos e, por vezes, acalorados. Não raro, assistimos episódios de fortes embates entre as partes. Agora, o que não se pode é criminalizar o embate, que, no mais das vezes, ocorre no calor do momento.
Explico que minhas condutas e ações foram realizadas durante a defesa da minha cliente e no exercício da minha profissão, não tendo qualquer conotação ou objetivo de atacar ou desacatar o magistrado. Foi uma reação combativa e proporcional às violações ocorridas durante todo o processo. Não é demais lembrar que o mesmo magistrado determinou, de ofício, a abertura de processo correcional contra mim, por suposta perda de prazo para apresentação da resposta a acusação. Ocorre que não perdi prazo algum. Está lá no evento 30 dos autos a prova de que cumpri como prazo para a defesa prévia. Quando falo de decência processual é disso que se trata. É legal/decente determinar a abertura de investigação disciplinar por uma perda de prazo que não ocorreu? Pois é.
Reforço que em momento algum pretendi ofender moral ou profissionalmente o magistrado, apenas combati, de forma enérgica, a série de violações e abusos de poder por ele perpetrados, que inviabilizam a plena defesa e a paridade de armas no processo penal. Embora eu não tenha tido a intenção de ofender o magistrado, consigno minhas sinceras escusas, caso ele tenha se sentido ofendido.
Registro, por fim, que recebo essa tentativa de criminalização da minha advocacia com a serenidade de alguém que atua dentro dos limites da ética e técnica processual, mas que jamais irá se curvar ou acovardar diante abusos de poder e de violações aos direitos fundamentais. Como diria a música, “paz sem voz não é paz, é medo!”. E não se faz defesa criminal com medo.
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.