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Cotidiano Quinta-feira, 09 de Outubro de 2025, 14:52 - A | A

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A cachaça da cadeia

Conheça a Maria Louca, a pinga clandestina e improvisada produzida em presídios

Pinga feita a partir da fermentação de cascas de frutas é um produto tradicional da cultura carcerária em todo o país

Administração

Por:
Marcos Zibordi

Terra 

Foto-Leandro Leandro

Enquanto bebidas adulteradas preocupam os consumidores, há um destilado que, embora artesanal e clandestino, nunca apareceu no noticiário por intoxicação com metanol: a Maria Louca — pinga improvisada em celas de presídios, cujo processo de fermentação e destilação seria praticamente inacreditável se não houvesse registros oficiais, reportagens, livros e relatos de ex-detentos.

Em São Paulo, 244 litros de ‘bebida e substratos’ foram apreendidos neste ano, informa a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Os ‘substratos’ são os ingredientes. “O principal é casca de fruta — qualquer fruta que fermenta: laranja, limão, maçã, manga, banana. O ideal são quinze dias de fermentação, mas a gente tirava com uma semana, para correr menos risco”, descreve Maurício Monteiro, 56 anos, sobrevivente do Massacre do Carandiru.

“A forma de preparar para a fermentação é o pulo do gato. Folha de eucalipto dá um gosto de Cointreau. Maçã também dá um sabor diferenciado. Difícil é conseguir o fermento, tem que contrabandear. Tudo que é proibido, tem mais valor na cadeia”, lembra Edilberto Soares, 62 anos, vinte deles em diversas cadeias do Rio de Janeiro, como Bangu II.

Além das cascas, a Maria Louca leva água, açúcar e fermento — que pode ser substituído por pão ou arroz cru, também fermentáveis. A mistura fica tampada em garrafas PET, galões e até tambores, como no Carandiru — que, com seus sete mil detentos, recebia produtos em grandes recipientes, como óleo e leite. “Tudo se comprava: barraco, cama, pasta de dente; tinha mercado, lanchonete, cachorro-quente, Coca-Cola gelada, cigarro, e tambores, galões”, relata Marcos Rocha, que produzia e vendia pinga no pavilhão 8 do Carandiru pós-massacre — seu apelido era Fumaça.

O processo de destilação da Maria Louca

Maurício Monteiro, que cumpriu 16 anos de pena em presídios paulistas, montou uma exposição sobre os 33 anos do Massacre do Carandiru na escola técnica que hoje funciona em um dos prédios preservados após a demolição do complexo. Na mostra do Instituto Resgata Cidadão, há fotos, reproduções de portas, cartas, facas, da ‘Teresa’ (corda feita com lençóis) e da “máquina”.

É assim que Monteiro chama o equipamento para destilar a pinga – ele é específico: Maria Louca é a mistura com cascas, “que dá um baratinho depois de fermentada”; mas “o ouro”, o produto principal, é a pinga destilada, “a pura mesmo, a branquinha, cheira para você ver”, diz ele abrindo a garrafa e mostrando ao repórter. Monteiro montou a máquina e destilou dez litros de Maria Louca, que renderam dois litros de pinga para a exposição.

A destilação é um desafio logístico. O líquido fermentado é cozido em gambiarras como a “perereca”, feita com resistência de chuveiro, ou a “bigorna”, improvisada a partir de pequenos fogões ou fornos portáteis. O vapor segue até a serpentina. “Aquela mangueirinha de transfusão, de soro hospitalar, é a melhor, transparente e resistente. A gente conseguia na enfermaria”, lembra o carioca Edilberto Soares, hoje escritor, que destilava pinga na cela em Bangu II.

Ao passar pela serpentina, o vapor se transforma em líquido — a pinga. A serpentina pode ser improvisada com um cano de antena de televisão, como na réplica montada para a exposição no antigo Carandiru. Em geral, ela fica dentro da pia, constantemente resfriada por água corrente. “Na saída da serpentina, emborcada numa garrafa, gota a gota, pinga a Maria Louca”, descreve Dráuzio Varella sobre o destilador Ezequiel, em Estação Carandiru.

O teste de pureza da Maria Louca

Os entrevistados contam que a destilação da pinga era feita de madrugada ou nos domingos de visita, quando policiais e agentes penitenciários não entravam nas celas. O teste de pureza consistia em colocar fogo em uma pequena quantidade. “Tem que queimar ficando azulzinho, aí é boa”, explica Monteiro. “O pessoal fazia vaquinha para comprar um litrão. Era muito consumido com leite condensado, em forma de batida. Descia que era uma beleza”, lembra Edilberto Soares, que atualmente escreve sua biografia. 

Polícia da Jacobina (BA) apreende 40 litros de cascas de frutas, água e outros ingredientes fermentando para produzir Maria Louca.
Foto: Site Boletim Policial
Rocha, hoje palestrante conhecido como Nego Marcos, diz que, na maior parte das vezes, a Maria Louca era vendida em pequenas quantidades — as “parangas” — com doses de um, três, cinco e dez reais. “A gente colocava no saquinho, sabe aqueles de sacolé, de sorvete? Mano, eu vendia até para o guarda”, lembra o ex-detento, que afirma ter produzido até 230 litros de pinga. “Você acha muito? Não se esqueça que eram sete mil homens.”

Obviamente, rodar com pinga na cadeia, dá problema. A Polícia Penal do Estado de São Paulo informa que produzir, vender ou consumir qualquer substância alcoólica é falta disciplinar, gerando processo administrativo. O órgão acrescenta que adota medidas para “dificultar o acúmulo de insumos para a produção de substâncias fermentáveis, a fim de mitigar o risco de fabricação de bebidas alcoólicas”.

Os “insumos” podem ser obtidos na alimentação servida nos presídios ou entrar pelas visitas, autorizadas a levar ‘frutas da estação’ aos parentes e conhecidos. Quanto às apreensões de pinga em anos anteriores a 2025, nem a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo nem a Secretaria da Administração Penitenciária informaram a quantidade de Maria Louca confiscada dos presos.

https://www.terra.com.br/visao-do-corre/pega-a-visao/conheca-a-maria-louca-a-pinga-clandestina-e-improvisada-produzida-em-presidios,0b07b014c0b2701f839231c515b1f49bbh9jtose.html?utm_source=clipboard

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