Recentemente empossada, a presidente do Conselho dos Direitos das Mulheres de Primavera do Leste, Dra. Miriam Cardoso, já lidera uma série de ações e articulações em defesa das mulheres. Em entrevista à comunicadora Ilânia, ela compartilhou suas experiências, os principais desafios da nova gestão e reflexões importantes sobre o enfrentamento à violência doméstica — um tema que, segundo ela, deve ser falado repetidamente.
“Falar sobre violência doméstica é necessário. Por mais que pareça repetitivo, os números mostram que não podemos parar. A cada sete minutos, uma mulher é agredida fisicamente no Brasil. E o impacto da violência vai muito além da vítima: afeta famílias, filhos, empresas, serviços de saúde e toda a sociedade.”
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Desafios à frente do Conselho
Apesar de estar assumindo a presidência agora, Miriam já fez parte de outras gestões, como vice e secretária, e conhece de perto as dificuldades enfrentadas.
“Os desafios são basicamente os mesmos. O maior deles é cultural. A mulher ainda precisa provar que tem o mesmo valor — não em força física, mas em direitos. E a resistência é grande, inclusive entre mulheres.”
Ela também critica o machismo internalizado, como quando a sociedade julga a mulher que continua em um relacionamento abusivo:
“Já ouvi comentários do tipo: ‘apanhou porque quis’. Isso machuca demais. Muitas estão presas a uma dependência emocional ou financeira. Não é simples sair.”
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Violência psicológica: sutil, devastadora e silenciosa
Miriam chama atenção para a violência psicológica, considerada por ela uma das mais perigosas.
“Ela começa com piadas, deboche, críticas sutis: ‘você não faz nada direito’, ‘engordou’, ‘está feia’. Tudo disfarçado de brincadeira. Isso vai corroendo a autoestima até a mulher se sentir culpada e incapaz.”
Segundo a presidente, muitas mulheres acreditam que podem mudar o agressor, mas essa é uma armadilha emocional.
“A gente mal consegue mudar a nós mesmas, imagine mudar alguém. A mulher precisa entender que não é sua responsabilidade corrigir o comportamento abusivo de ninguém.”
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Onde buscar ajuda? A rede de enfrentamento em ação
O Conselho atua de forma integrada com diversas instituições em Primavera do Leste. Miriam reforça que há uma rede pronta para acolher a vítima.
“Ela pode pedir ajuda na escola do filho, na OAB, no posto de saúde, na delegacia, na sala da mulher ou diretamente no Conselho. Toda a rede está preparada para orientar e acolher.”
A gestão tem priorizado a prevenção:
“Promovemos rodas de conversa, palestras, cafés da manhã. Muitas vezes, ao ouvir a história de outra mulher, a vítima se reconhece. É aí que começa o processo de libertação.”
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Religião e submissão: interpretação equivocada
Durante a conversa, Miriam também abordou o uso distorcido de textos religiosos para justificar o machismo.
“Submissão, na origem, significa estar sob a mesma missão, caminhar juntos. Mas muita gente prega a submissão como se fosse obediência cega. Isso está errado.”
Ela lembra que, segundo a Bíblia, “o homem que não honra sua esposa tem suas orações desconsideradas por Deus”.
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Romper o ciclo da violência
A entrevistadora, Ilânia, compartilhou seu próprio testemunho como sobrevivente de um relacionamento com um psicopata. Hoje, ela transformou sua dor em ação e lançou um livro que serve de guia para vítimas.
“Há 30 anos não existia Lei Maria da Penha. Eu sobrevivi. Minha mãe também. Hoje, quero informar e apoiar outras mulheres.”
Miriam elogiou:
“Você rompeu um ciclo. É uma semente que está sendo plantada. Talvez não vejamos a colheita, mas nossos filhos e netos vão.”
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Recuperar agressores também é prevenir
Um projeto realizado dentro da cadeia pública, com autores de violência, também foi destacado na entrevista. O índice de reincidência é mínimo.
“Acreditamos na ressocialização. Os agressores escrevem cartas, recebem apoio psicológico e participam de conversas. É preciso tratar também quem agride, para que o ciclo não continue.”
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“Não temos casa de apoio, mas temos acolhimento”
Primavera do Leste ainda não possui uma casa de apoio fixa para vítimas, mas Miriam explica o porquê:
“Muitas vítimas são de fora. Não têm apoio aqui. Quando sofrem violência, a reação é ir embora. Acolhemos essas mulheres em locais provisórios, até que consigam voltar às suas cidades.”
Por isso, segundo ela, não há “demanda” oficial para uma casa fixa, mas a cidade ainda precisa de um local adequado.
“Às vezes, a mulher não denuncia porque não tem para onde ir. E isso também é um tipo de violência.”
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A importância da denúncia e da empatia
Miriam reforça que todos — vizinhos, parentes, amigos — devem estar atentos:
“Às vezes, o único lugar que a vítima frequenta é o mercado ou a farmácia. E é ali que ela pode pedir socorro. O que a gente mais ouve é: ‘isso não é problema meu’. Enquanto isso, a vizinha pode estar morrendo em silêncio.”
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Medidas protetivas salvam vidas
Em 2023, o Mato Grosso registrou 54 feminicídios — nenhuma das vítimas tinha medida protetiva.
“Tem gente que diz que é ‘só um papel’. Mas se 54 mulheres morreram e nenhuma tinha a medida, isso quer dizer muita coisa. Aqui em Primavera, desde a criação da Delegacia da Mulher, há quatro anos, não tivemos nenhum feminicídio.”
Ela destaca que a rede de enfrentamento tem sido eficiente. E que esse trabalho, embora cansativo, vale a pena.
“É desgastante? Sim. Mas salva vidas.”
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Voluntariado e amor pela causa
Outro ponto importante é que os integrantes do Conselho atuam de forma voluntária.
“Não recebemos salário. Muito pelo contrário, investimos do nosso bolso. Porque acreditamos que estamos salvando não só uma mulher, mas uma geração.”
Ela conclui:
“Você me contou que sua filha não sofre violência. E seu filho não pratica. Esse já é o resultado da sua coragem.”
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Homens e pessoas LGBTQIAPN+ também são vítimas
Embora a Lei Maria da Penha seja voltada para mulheres, outras leis amparam homens e casais homoafetivos.
“Já tivemos adolescentes nos contando que são agressores. Esse é o primeiro passo: reconhecer. Outro caso foi de uma menina de 16 anos que perguntou o que fazer quando os dois se agridem. A resposta é sempre: alguém precisa denunciar.”
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Uma mensagem final para quem sofre em silêncio
A presidente finalizou com um apelo direto:
“Você está em um relacionamento que te faz mal? Busque ajuda. Você não está sozinha. Se sua família não te apoiou, existe uma rede pronta para te acolher.”
E encerrou com a frase de Martin Luther King:
“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.”