Samba não é só um gênero musical. Dizer isso seria reduzir uma das maiores invenções do povo negro a um entretenimento fácil. Samba é uma tecnologia de sobrevivência. É um sistema filosófico que o Brasil insiste em não reconhecer, porque admitir isso exigiria rever a própria história do país.
Samba é a prova viva de que alegria não significa alienação. É a pedagogia da encruzilhada que transforma silêncio forçado em voz coletiva. É a política da roda que ensina convivência com hierarquia majestosa, com convivência em que cada pessoa ocupa seu lugar sem apagar a outra. O samba é memória, é estratégia de cura e é linguagem que ultrapassa o discurso formal. Samba é o jeito que as pessoas negras encontraram de continuar existindo quando tudo, absolutamente tudo, estava organizado para interromper essas existências.
Samba é espiritualidade que aprende a dançar com o cotidiano. É a batida que sobreviveu às casas invadidas, aos terreiros perseguidos, às leis que criminalizavam tambores porque sabiam que tambores organizam comunidades. É herança africana transfigurada pela experiência urbana e pela força de gente que não desistiu de criar beleza mesmo quando estavam negando a elas o direito ao básico.
Samba é também disputa de narrativa. Porque enquanto o país vende a imagem do Brasil cordial, é o samba que mostra quem sustenta essa cordialidade. Ele revela que a verdadeira elegância brasileira nasceu do chão, da favela, da periferia, das cozinhas, das rodas improvisadas. E quem não encara isso de frente, repete aquela velha fuga que tenta desvincular cultura negra de intelecto, de profundidade, de criação sofisticada.
O samba é a prova de que pensar não precisa ser sisudo. Pensamento também acontece em roda. Pensamento também pode ser cantado. Pensamento também pode ser corpo inteiro em movimento. O Brasil prefere chamar de festa porque festa parece inofensiva. Mas o samba nunca foi inofensivo. Ele funda pertencimento. Ele reordena o mundo. Ele dá nome ao que o racismo tenta apagar.
Samba é documento histórico e é profecia. É o que lembra quem fomos e o que anuncia quem podemos ser. É a coragem de seguir sambando apesar de todas as tentativas de silenciamento. É insistência em pulsar mesmo quando o país tenta impor marasmo. É ética, é estética, é política, é invenção permanente.
Se eu tivesse que resumir sem empobrecer, diria assim: Samba é a voz mais honesta do Brasil e, por isso mesmo, é o que o Brasil mais tenta controlar.
















